28 dezembro, 2007

125 - Solidão

Foto: Shark inho

Poema do Homem Só

Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.
Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nehum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.
Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarçe,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.

António Gedeão

27 dezembro, 2007

124 - Olhos de água

Foto: Shark inho - Jan.2007



Menina dos olhos de Água

Menina em teu peito sinto o Tejo
e vontades marinheiras de aproar
menina em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar

menina em teus olhos vejo espelhos
e em teus cabelos nuvens de encantar
e em teu corpo inteiro sinto o feno
rijo e tenro que nem sei explicar

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

aprendi nos "Esteiros" com Soeiro
aprendi na "Fanga" com Redol
tenho no rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo

aprendi a amar a madrugada
que desponta em mim quando sorris
és um rio cheio de água levada
e dás rumo à fragata que escolhi

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar...
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

(Pedro Barroso)

123 - H2O

Foto: Shark inho

Poema da Água

A água também nasce pequenina -
nasce gota de orvalho ou de neblina...
A água também tem a sua infância - quando apenas riacho cantarola
brinca de roda nos redemoinhos
salta os seixos que encontra
e faz apostas de corrida - travessa -
por entre as grotas e peraus
e arranca as flores que a marginam
para engrinaldar a cabeleira solta
sobre o leito revolto das areias...
A água também tem adolescência -
sonha lagos românticos à lua
fitando os astros namorados dela
embevecida em seus olhos de ouro...
e assim sempre amorosa e sonhadora
vai tecendo e bordando - dia e noite
o seu vestido de noiva nas montanhas
e o seu véu de noivado nas cascatas...
A água também tem maturidade -
fica serena e grave em rios fundos
e num destino generoso e amigo
espalha a vida que em si mesma encerra
semeia bençãos para o grão de trigo
abre caminhos líquidos da terra
e enlaça os povos através dos mares...
A água também tem sua velhice
e de ver-lhe os cabelos muitos brancos
onda lenta de espuma destrinçada em neve, nos ares flutuando...
A água também sofre...
e quando sofre se faz divina e vem brilhar em lágrimas
ou se reflete a dor da natureza
geme no vento trnasformada em chuva.
A água também morre...e quando seca
- e a sua morte entristece tudo :
choram-lhe, enfim na desolação,
todos os seres vivos que a rodeiam
porque ela é o seio maternal da vida
e de tal maneira ama seus filhos rudes
que muitas vezes para os salvar se deixa
ficar sem o murmúrio de uma queixa
prisioneira de poços e açudes...

Bendita seja, pois, água divina
que fecunda, consola, dessedenta, purifica,
e que, desde pequenina,
feita gota de orvalho,
mata a sede das plantas entreabertas
e prepara o festivo esplendor da primavera...
e que, nascida em píncaros da serra ter
um fim de planície e de humildade
até perder, na última renúncia,
o nome de batismo de seus rios
para ficar anônima nos mares.

(Raul Machado) (Brasil)

22 dezembro, 2007

122 - O MEU RIO CHAMA-SE TEJO

Foto: Shark inho

Hino ao Tejo

Ó Tejo das asas largas
Pássaro lindo que se ouve em todas as ruas de Lisboa
Ó coroa duma cidade maravilhosa
Ó manto célebre nas cortes do mundo inteiro
Faixa antiga duma cidade mourisca
Fênix astro caravela liquida
Silêncio marulhante das coisas que vão acontecer
Deslizar sem desastres sem fado sem presságio
Tu ó majestoso ó Rei ó simplicidade das coisas belíssimas
Nas tardes em que o sol te queima passo junto de ti
E chamo-te numa voz sem palavras marejada de lágrimas
Meu irmão mais velho
(Alberto de Lacerda)

19 dezembro, 2007

121 - Arre Burrinho

Foto: Shark inho
A Moleirinha

Pela estrada plana, toque, toque, toque
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toque, toque, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toque, toque, toque, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...

Toque, toque, toque, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!

Toque, toque, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

(Guerra Junqueiro)

13 dezembro, 2007

120 - Anoitecer

Foto: Shark inho

Anoitecer

A luz desmaia num fulgor de aurora,
Diz-nos adeus religiosamente...
E eu que não creio em nada, soa mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora,
Tenho bençãos de amor p’ra toda a gente!
E a minha alma, sombria e penitente,
Soluça no infinito desta hora...

Horas tristes que são o meu rosário...
Ó minha cruz de tão pesado lenho!
Ó meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:
Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...

Florbela Espanca, 1923

119 - LIS(BOA) TODOS OS DIAS - Ponte Vasco da Gama

Foto: Shark inho

Lisboa

Digo: "Lisboa"
Quando atravesso - vinda do sul - o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas -
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
- Digo para ver

Sophia de Mello Breyner Andresen

05 dezembro, 2007

118 - O Nevoeiro

Foto: Shark inho

Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
define com perfil e ser
este fulgor baço da terra
que é Portugal a entristecer
- Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!

(Fernando Pessoa)

04 dezembro, 2007

117 - LIS(BOA) todos os dias

Foto: Shark inho

A Cidade

A cidade é um chão de palavras pisadas
A palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
A palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco. Um pulmão que respira
Pela palavra água pela palavra brisa.
A cidade é um poro um corpo que respira
Pela palavra sangue pela palavra ira.

A cidade tem ruas de palavras abertas
Como estátuas mandadas apear.
A cidade tem praças de palavras desertas
Como jardins mandados arrancar.

A palavra esperança é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa-chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
Não há rua de sons que a palavra não corra
À procura da sombra duma luz que não há.

(José Carlos Ary dos Santos)

03 dezembro, 2007

116 - LIS(BOA) todos os dias

Foto: Shark inho

A CIDADE

Em Lisboa não morro mas espero
O Tejo a água a ponte e o Rossio.
Em Lisboa não morro mas espero
Um pouco menos Tejo menos frio.

Em Lisboa vendendo a minha fruta
De azeite e mel de ódio e de saudade.
É dentro de mim próprio que eu tropeço
Num degrau de ternura da cidade.

Em Lisboa gaivota que navega
No Terreiro do paço por acaso
Eu encontro a dimensão da minha entrega
No aterro, onde me enterro a curto prazo.

Limoeiro, limo do mar da Palha
Palha podre de tédio rio surpresa
Desta Lisboa de água que só falha
Quando do céu azul sobra tristeza.

Lisboa meu amor, minha aventura
Em cada beco só uma saída
Alfama, meu mirante de lonjura
Má fama que a nós todo dás guarida

Mas esta angustia que eu canto
Lisboa, Lisboa, não vem ao caso!...

(José Carlos Ary dos Santos)

115 - As mãos

Foto: Shark inho

Os cinco dedos da mão

Nós temos em cada mão
Cinco dedos desiguais:
um maior dois mais pequenos
E outros dois ainda mais.

É vê-los em seu trabalho
Que harmonia e perfeição!
Mexe um ? logo os outros todos
O seu auxílio lhe dão.

E quando o indicador
Mostra aos outros o caminho,
- Vamos – diz o pai de todos,
E lá vai tudo unidinho

Mais fidalgo, o anelar
Quase sempre anda enfeitado.
Mas ai do pobre meiminho,
Se não lhe andasse encostado!

Porém o mais cuidadoso
É o dedo polegar.
Nada os outros fazem, nada,
Que os não vá logo ajudar.

- Mas, porque razão, (pergunta
A Laurinha um dia à mãe)
Sendo todos tão diferentes,
Se dão entre si tão bem?

_ Minha filha, diz-lhe a mãe,
É para nos ensinar
Que uns aos outros, neste mundo,
Nos devemos ajudar.

E que bem feliz seria
Certamente a humanidade
Se por toda a gente fosse
Praticada esta verdade


(Extraído do livro de Leitura da 3ª classe de 1950)

114 - Fim de Tarde

Foto: Shark inho

SEMPRE

Não! Não me deixes fazer nada,
Não me deixes já ir-me,
Lua
Branca!
Nada mais fazer do que este encanto;
esta quieta viagem clara e alta!
Não, não me deixes
fazer nada;
não me deixes já indo,
Lua
pálida!
O pé enamorado, não mo deixes...
Doba todas as sendas e as estradas!
E estas mãos, minhas mãos transidas,
Ata-mas!
Craveja-mas de estrelas,
Lua
errática!...

(Jorge Amorim)

113 - A LUA

Foto: Shark inho

MAGNIFICAT!

A lua
molha os pés no mar.
Suas mãos
cantam, leves de espuma!
A lua
ascende, alva, do mar.
Suas mãos
cantam, altas de graça!
A lua
exulta, sobre o mar.
A onda
clama: - Excelsa!
Eleita!...

(Jorge Amorim)

112 - Azul


Foto:Shark inho

NADA-AZUL

Nada, é azul! Como os imensos
Céus vazios...
Nada, é azul: antes de tudo,
ou a essência de tudo,
e os anelos.
Nada, é azul: onde florescem
Os anjos e os zénites
Mais perfeitos.
Nada, é azul: como a minha alma
e o nome, perfeitíssimo,
de Deus...
Negras, são as coisas. E as mãos.
Mas nada, é azul.
E o azul
Reina,
Celeste, incontestável!...

(Jorge de Amorim)

02 dezembro, 2007

111 - Lis(boa) Todos os dias

Foto: Shark inho

Havia na cidade (extracto)

Havia na cidade arranha-céus, colmeias
De abelhas racionais acomodadas em quartel
Vivendo as vidas próprias como alheias
Fabricando o seu fel.

Em cada arranha-céus havia trinta andares,
Em cada andar uns tantos furos,
E, lá por cima, o céu, fora de todos os olhares,
Não chega a ser céu entre esses muros

(José Régio)

110 - Lis(boa) todos os dias

Fado das mulheres de vida fácil

Certas das ruas mais tortas,
Mais sujas, ou mais sombrias,
De qualquer pobre cidade
Tem certas velhas portas,
Janelas com gelosias,
Um ar de cumplicidade…

Qualquer centro superfino
Casas tem bem semelhantes,
Mas de bem mais aparato,
Que atraem bons visitantes
Com seu grande ar clandestino
De vício rico e recato

Ali fuma, bebem, comem,
Dormem rebanhos de estrelas
A que chão caídas hoje!
Quem lá vai…, - prova que é homem:
Prova-o servindo-se de elas;
Serve-se, paga-lhes, foge…

E homens há de toda a sorte,
Doentes de todo o mal,
Tarados de todo o vício,
Que naquele amor venal,
Filho do crime e da morte
Vão buscar gosto ou flágício.

Amor …?! Nem amor nem nada,
O mais que lá vão quaisquer
Buscar a tais labirintos
É carne martirizada
Quem nem quizeram sequer
Se lá não foram famintos.

Pois que amor darão, aquelas
Com quem nos vamos deitar
Mas mal olhamos na rua?

(José Régio)

109 - O Meu rio chama-se TEJO

Foto: Shark inho

O Tejo

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

(Alberto Caeiro)