18 dezembro, 2008

261 - Feira de vaidades














































Foto: Charquinho

Eu, etiqueta

"Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de baptismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camisola, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu ténis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem — anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registadas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso dos outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
Da sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
Ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou — vê lá — anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrina me tiram, recolocam,
objecto pulsante mas objecto
que se oferece como signo de outros
objectos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome rectifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente."



Carlos Drummond de Andrade

260 - Natal













































Foto: Charquinho

NATAL À BEIRA-RIO

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!

E o Menino nascia a bordo de um navio

Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?


David Mourão-Ferreira

14 dezembro, 2008

259 - Lis(boa) todos os dias

Foto: Charquinho

A Ponte (o rio) Entre as Cidades

Rio de duas cidades
dividido entre tristezas
uma ponte assim as une
não de aço, de pobrezas
Álvaro Pacheco

10 dezembro, 2008

258 - Mulher com M Grande

Foto: Sharkinho

Avó e Neto

Vovó, por que não tem dentes?
Por que anda rezando só.
E treme, como os doentes
Quando têm febre, vovó?

Por que é branco o seu cabelo?
Por que se apóia a um bordão?
Vovó, porque, como o gelo,
É tão fria a sua mão?

Por que é tão triste o seu rosto?
Tão trêmula a sua voz?
Vovó, qual é seu desgosto?
Por que não ri como nós?

Meu neto, que és meu encanto,
Tu acabas de nascer...
E eu, tenho vivido tanto
Que estou farta de viver!

Os anos, que vão passando,
Vão nos matando sem dó:
Só tu consegues, falando,
Dar-me alegria, tu só!

O teu sorriso, criança,
Cai sobre os martírios meus,
Como um clarão de esperança,
Como uma benção de Deus!

Olavo Bilac

03 dezembro, 2008

257 - A rosa do meu jardim

Foto: Sharquinha

Poema da Rosa

Há uma rosa linda
No meio do meu jardim
Dessa rosa cuido eu
Quem cuidará de mim?

De manhã desabrochou
À tarde foi a escolhida
Pra de noite ser levada
De presente à minha amiga

Feliz de quem possui
Uma rosa em seu jardim
Minha amiga com certeza
Pensa agora só em mim.

Quando sopra o vento frio
E o Inverno gela o jardim.
Eu tenho calor em casa
E fico quentinho assim.

Feliz de quem tem um tecto
Para ajudar sua amiga
Fugir do vento ruim
Que deixa gelado o jardim
Berthold Brecht

02 dezembro, 2008

256 - Golfinhos em terra

Foto: Filha de Tubarão

AMIGO GOLFINHO

Tenho um golfinho amigo,
Ali para as águas do Sado
Ele andava perdido,
E por alguém foi encontrado
Por Bisnau foi baptizado
E muito feliz ficou
Por uns amigos ter encontrado,
Que por eles se apaixonou.

Ele é muito brincalhão,
Porque muitas partidas faz
Vocês acreditem ou não,
Do que este amiguinho é capaz
Então, não é que o Pescador,
Que ia na sua traineira
Naquele mar de primor,
Foi levado para a brincadeira.

Por este golfinho descarado,
Que a traineira fez balançar
Deixando o pescador todo molhado,
Que com ele não se foi zangar.

Ó golfinho brincalhão,
Diz o pescador, ao Bisnau
Ando com as redes neste mar chão,
A ver se apanho o carapau
E tu me deixas todo molhado,
neste mar tão salgado.

O golfinho, para as pazes fazer
Chamou os carapaus com rigor
Para uma bela pesca oferecer,
Ao seu querido amigo pescador.

Lá foram os dois muito contentes
Pelo Sado, devagar
Levando como presente,
Uma pesca de encantar
Bisnau e o Pescador,
Que no Sado muitos os vejam
Não dêem aos golfinhos dor,
que eles a nós nos beijam